quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Volta Por Cima


Extrapolei os sonhos!
Vivenciei as mágoas.
Convivi com fracos,
suportei os falsos.
Me mantive em pé,
mesmo com pedras
me atingindo em cheio.
Varri da alma
a revolta ignóbil,
o desprezo inútil,
a tristeza vã,
a descrença falsa.
Reabri meu coração à vida.
Deixei reflorescer ternura.
Olhei em volta e para o céu sem fim...
Me conformei com o mundo,
me conformei com a vida.
A vida e o mundo
que mereci pra mim.
Obrigada, Senhor, pela volta
que a vida me fez dar.
Aprendi a amar-te, sem mandamentos,
pela simples razão de te amar.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A injustiça revoltada

Para revoltar-se contra a injustiça não é preciso nenhum senso de justiça: basta um interesse pisado, um calote, uma inveja, um ciúme, o desconforto visual do burguês que contempla a multidão esfarrapada. Ninguém se indigna mais com a injustiça do que o injusto quando a sofre. A revolta do homem honesto assaltado não se compara, em intensidade e fúria, à do ladrão lesado por seus pares. A primeira contenta-se, no mais das vezes, com o esquecimento; a segunda não se aplaca nem com a vingança: após matar o ofensor, ainda se sente credora do destino que não lhe devolveu, com os bens subtraídos, o tempo perdido em humilhação e espera.

O homem que clama contra a injustiça não se ergue, só por isso, acima dela: apenas colore a injustiça geral com os tons do seu ódio pessoal, o que não o torna mais justo que a média dos outros, mas lhe infunde aquele falso sentimento de dignidade que o imuniza contra a percepção de suas próprias injustiças. Quem, na embriaguez da revolta, há de tomar distância de si para o exame de consciência e o arrependimento? A revolta contra a injustiça é um poderoso narcótico do senso moral.

Quando não se volta contra uma injustiça localizada e precisa, mas contra aquele estado de coisas geral e difuso que se chama “injustiça social”, esse ódio se torna ainda mais entorpecente: atacando um alvo impessoal e abstrato, nunca tem de provar-se melhor que ele numa acareação direta. Está livre para dizer dele o que bem entenda, num paroxismo de imputações levianas e vociferações hiperbólicas do qual nenhuma veracidade se exige e pelo qual não terá de responder nunca, nunca mais. O discurso contra a injustiça social é o ventre onde se gera a maior quantidade de mentiras, de calúnias, de taras do sentimento e aberrações do intelecto.

Ademais, é longo, é excessivamente longo o caminho que vai da denúncia inicial até a conquista dos meios de fazer justiça, isto é, a conquista do poder. Quantos revolucionários e reformadores messiânicos, prometendo a reparação das injustiças no final, não se livraram de responder pelas que foram praticando por sua vez ao longo do trajeto, quase sempre maiores e mais sangrentas do que aquelas que denunciavam? Cada palavra dos discursos de Robespierre, Lenin, Stalin, Mussolini, Hitler, Mao e Fidel Castro respinga de ódio a injustiças reais e imaginárias -- e todos os seus contemporâneos somados não produziram tanta injustiça quanto eles.

Na história da modernidade, a ascensão do sentimento de injustiça, que é a marca do seu ethos predominante, fazendo nela as vezes da eqüidade romana, da fidelidade judaica e da caridade cristã, vem junto com a proliferação de injustiças, crueldades e pavores jamais imaginados pelas épocas que a antecederam.

A revolta contra a injustiça não é a expressão, mas a inversão exata do anseio bíblico de justiça. Este se esmera em abster-se de cometer injustiça, mesmo ao preço de sofrê-las. Aquele busca esquivar-se de sofrê-las, mesmo ao preço de cometê-las ainda piores e em maior número. Só na mente deformada de um Frei Betto esses dois sentimentos opostos e inconciliáveis podem parecer um só.

A revolta contra a injustiça é o mais baixo sentimento moral humano. Por isso mesmo, ela é o mais fácil de incutir nas massas para as mobilizar politicamente, e é normal que partidos e líderes façam dela, em seu proveito próprio, o mandamento primeiro ou único da moralidade pública, o critério e o emblema que distinguem os bons dos maus.

Quando isso acontece, a consciência moral do povo está no seu ponto mais baixo. Todos se sentem lesados e injustiçados, todos se inflam de revolta, todos discursam, vociferam, acusam — e todos, cada vez mais, eximem-se de julgar seus próprios atos. A indignação sobe contra a moralidade que baixa, sem reparar que ela baixa, justamente, sob o peso dos insultos que recebe da revolta insana.

A revolta contra a injustiça paralisa e corrompe o senso moral, trocando a sua complexa engenharia de sentimentos e valores pelo estereótipo simples de um rancor padronizado, repetível até a alucinação, acionável por reflexo condicionado. A revolta contra a injustiça está para os sentimentos morais — para o amor, a honra, o dever, a bondade, a lealdade — como o uivo do lobo está para um coral de Bach. Se, neste país, a ascensão triunfal de uma ideologia que consagra a revolta contra a injustiça como pedra de toque da qualidade moral dos seres veio junto com a expansão generalizada da imoralidade, do banditismo e da corrupção, isso não foi coincidência de maneira alguma. A degradação do senso moral em discurso ideológico é um processo entrópico, a passagem do diferenciado ao indiferenciado, do cultivado ao rudimentar, da reflexão ao reflexo, do argumento ao slogan.

É impossível que a conduta da sociedade não reflita, na deterioração geral das normas e dos atos, uma queda tão vertiginosa do nível de consciência de seus líderes, de seus intelectuais, de seus guias e modelos.

Quando, anos atrás, escrevi a série de artigos “Bandidos e letrados”, lembrando a intelectuais, jornalistas e artistas a culpa que lhes cabia no fomento à criminalidade, uma gota de luz que restasse no fundo de suas almas os teria induzido ao exame de consciência e à mudança de rumo. Mas essa gota já havia secado. Desde então, o caos e a violência cresceram até o insuportável -- e eles continuam bradando contra a “injustiça social” desde o alto de seu pedestal de inépcia e vaidade.

Foi por essa via que chegamos ao completo entorpecimento mental de uma sociedade idiotizada que sonha em poder reprimir o narcotráfico protegendo as Farc, acabar com os seqüestros sem tocar na reputação do Foro de São Paulo, restaurar a autoridade demolindo as Forças Armadas, impor a ordem dissolvendo a moral e a religião, instaurar o respeito por meio do deboche, da insolência pueril e da lisonja às paixões mais baixas da alma humana. O poço de inconsciência em que a liderança intelectual mergulhou este país não tem fundo.